“Quando
chegou a plenitude dos tempos Deus enviou seu Filho nascido de mulher!” Gl 4, 4
Que
é que Paulo quis dizer com “plenitude do tempo”? Que é que esse momento tem de
tão especial para ser considerado pelo apóstolo como o tempo (kairós) de
Deus? Quais condições determinaram o envio do Filho? A essas perguntas
tentaremos responder. O significado da expressão “plenitude do tempo” não é
ponto pacífico entre os exegetas do Novo Testamento. O termo “plenitude do tempo” na passagem de
Gl 4,4 explicando ainda que se trata do “tempo determinado” por Deus para seus
filhos menores tornarem-se herdeiros adultos. A Bíblia do Peregrino, por
sua vez, “Mas quando se cumpriu o prazo,
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. Todavia, essa
diferença de tradução auxilia-nos a encontrar a real intenção de Paulo ao
escrever esse verso. “Plenitude do tempo” e “cumpriu o prazo” dão-nos a ideia
de momento certo, ideal e esperado. O termo grego que traz em seu bojo esses
significados é kairoi (kairós).
Kairós
–
Vocábulo grego que significa tempo. Como encontrado no Novo Testamento, exprime
não apenas um dado cronológico, mas, acima de tudo, a ação de Deus no universo,
que, de acordo com os seus atributos morais e a absolutos, trabalha os tempos e
as estações para que todos os seus planos e conselhos tenham plena consecução
(1Ts 5,1). Kairós é o tempo de Deus. Oscar Cullmann explica-o da
seguinte forma: “O que caracteriza o emprego de kairós é que ele designa
no tempo um momento determinado por seu conteúdo”. No Novo Testamento o uso do termo kairoi é
aplicado à história da salvação. O termo não se refere a estimativas humanas, é
um decreto divino que faz desta ou daquela data um kairós, e isso em
vista da realização do plano divino da salvação, o qual se dá porque tal plano,
em sua realização, está ligado aos kairoi, aos momentos escolhidos por
Deus, que é uma história da salvação.
Respondemos
às duas primeiras perguntas levantadas no início. Resta apenas uma: “Quais
condições determinaram o envio do Filho?” O cristianismo não é um evento
isolado do mundo, ele surgiu num tempo determinado, num contexto geopolítico
singular e em condições históricas propícias que serviram como pano de fundo
para a afirmação da sua influência. É exatamente nesse pano de fundo (Cristo e
o contexto histórico em que nasceu) que podemos encontrar as melhores
evidências e os melhores vestígios da atuação divina que transformou e deu
forma à natureza e mensagem da Igreja cristã.
A primeira
observação que devemos fazer é: Jesus é um evento histórico, ou seja, ele viveu
durante um certo intervalo de tempo e nesse mundo em que nascemos, vivemos e
morremos até hoje. Não é exatamente isso que nos mostra o evangelista Lucas. Na
verdade, ele buscou situar a pessoa histórica de Jesus dentro de limites
temporais. Segundo ele, Jesus de Nazaré nasceu sob o governo do imperador
Augusto (Lc 2,1). Como podemos observar em Mc 1,15 e Gl 4,4, existe uma
delimitação temporal de um conjunto de condições históricas, políticas, econômicas,
sociais e geográfi cas, às quais, para eles, propiciaram a encarnação do Verbo,
constituindo assim, como vimos, o kairós de Deus. Esses textos revelam
que Jesus Cristo não nasceu numa época qualquer, mas ao chegar a “plenitude dos
tempos”. Como as profecias messiânicas não apontam para uma data da vinda do
Messias, não se pode interpretar esses textos como fazendo alusão ao
cumprimento de uma profecia específica. O que se pode supor é uma linha com uma
profecia de Daniel. De acordo com os
estudiosos, a interpretação adequada de “plenitude dos tempos” é: “tempo
certo”, “momento ideal”, “ocasião propícia” designada por Deus, mas não
revelada nas profecias escritas.
Assim, temos a
seguinte definição técnica para a expressão “plenitude dos tempos”: época ou
contexto histórico cuja realidade (acontecimentos) foi muito favorável ao
objetivo da vinda de Cristo ao mundo, que é a anunciação e propagação universal
do Evangelho. A natureza dessa realidade é a uniformização política propiciada
pelo sistema administrativo do Império Romano, somadas as contribuições
religiosas, dos judeus, e culturais, dos gregos, que já faziam parte desse
ambiente mundial. Essas três civilizações trouxeram grandes contribuições para
a ocorrência do evento central e único da linha da salvação durante o Império
Romano do séc I. Roma influenciou na política,os gregos na questão intelectual
e os judeus na religiosidade.
Os romanos
Como já sabemos, os romanos
influenciaram politicamente os povos sob seu domínio. A seguir, algumas
contribuições prestadas por Roma à difusão do cristianismo:
• domínio mundial de Roma;
• os povos unificados
por uma língua universal;
Domínio mundial
de Roma
Quando o
cristianismo surgiu, e durante os primeiros séculos de sua existência, os
romanos eram os senhores do mundo. O objetivo dos romanos era ter a supremacia
sobre toda a costa do Mediterrâneo, com a finalidade de, nos meses de inverno,
terem uma rota segura até o Egito (celeiro do império). Em vista disso,
conquistaram todos os povos entre Roma e o Egito, portanto, circundaram o
Mediterrâneo. Eduard Lohse descreve assim a empreitada territorial romana:
Após sua vitória no encarniçado conflito
com Cartago, os romanos deram, a partir da metade do século II a.C., crescente
atenção à Grécia e ao Oriente. Em seu encontro com o helenismo, assimilaram a
arte e a ciência dos gregos, estendendo, ao mesmo tempo, cada vez mais seu
poder, por meio de sucessos políticos. No século I a. C., a Síria e a Palestina
submeteram-se à tutela romana. Com isso, todo o leste da região mediterrânea
estava sob o domínio dos romanos, que se tornaram os sucessores gregos em todos
os lugares.
A importância de
conhecer-se a extensão do domínio romano é que, como podemos notar, o
cristianismo, durante os três primeiros séculos de existência, não ultrapassou
os limites do Império Romano. Não só isso. Como o professor de História da
Igreja Robert H. Nichols nos lembra, os romanos não dominaram apenas pela força
todas essas regiões. Eles possuíam uma administração eficaz e inteligente, pois
onde quer que estendessem o seu domínio, eles levavam uma civilização
incomparavelmente superior à anteriormente existente naquelas terras.
Unificação dos
povos
Por muitas eras,
governos separados tinham formado grupamentos humanos que se sentiam diferentes
e isolados de todos os grupos; mas, com o Império Romano, os povos unificaram-se,
no sentido de que todos os governos tinham sido derrubados e um poder único
dominava em toda parte. Os romanos, como nenhum outro povo até então, desenvolveram
um sentido da unidade da espécie sob uma lei universal. Essa unificação foi
possível graças à administração centralizada que Roma outorgava aos povos sob o
seu domínio. Existiam províncias diretamente subordinadas ao imperador e outras
subordinadas ao senado. As províncias subordinadas ao imperador eram
administradas por governadores indicados pelo próprio César. As subordinadas ao
senado também eram administradas por governadores, entretanto esses eram
escolhidos pelo senado, que enviava regularmente procônsules a fim de
fiscalizarem os referidos territórios. Uma situação estranha e que está
relacionada diretamente a Palestina eram os chamados “principados aliados”, os
quais eram administrados por príncipes que deveriam possuir a aprovação de
Roma. Gozavam de um grau maior de autonomia, contudo, ao menor sinal de
descontrole, eram visitados por procuradores de Roma com o objetivo de
supervisionar o território.
Língua universal
O Império Romano
era um Estado cosmopolita, em cujo extenso território, com suas fronteiras
defendidas pelas armas, a cultura greco-romana podia desenvolver-se sem
obstáculos, e aos poucos formou uma nova unidade. Em todo o Oriente do império,
e também em grandes partes do Ocidente, falava-se e entendia-se o grego, que se
tornara a língua geral da região mediterrânea desde os tempos de Alexandre
Magno. A partir de um desenvolvimento e de uma simplificação da língua ática,
falada em Atenas no tempo dos poetas trágicos e de Platão, nascera a assim
chamada koinê, ou dialeto “comum”. Era usada para todos os fins no
intercâmbio popular. Quem quer que a falasse seria entendido em toda parte,
especialmente nos grandes centros, onde o cristianismo foi primeiramente
implantado. Os primeiros missionários pregaram quase sempre nessa língua, e
nela foram escritos os livros neotestamentários.
Mas não era em
todos os lugares que se falava e se escrevia essa língua gramaticalmente
correta. Também se misturavam nela palavras de línguas orientais e latinas.
Todo mundo, porém, na medida do possível, se esforçava por dominar o grego, a
fim de não ser contado entre os bárbaros, que eram vistos com desprezo, porque
sua língua parecia uma série de sons incompreensíveis (bar-bar); e todos
queriam possuir uma pequena porção da cultura dos gregos.
Entretanto,
devemos considerar que o koinê era, também, um dialeto urbano. Nas
aldeias da Galiléia, o aramaico presumivelmente ainda era a língua dominante.
Quando o cristianismo, em suas formas urbanas, eventualmente penetrava nas
culturas das aldeias, os documentos gregos precisavam ser traduzidos para as
línguas autóctones, inclusive, ironicamente, o aramaico, agora um dialeto
falado na região da Síria. Renan também observou essa característica do mundo
romano e até o relacionou ao fato de os camponeses serem os últimos a se
tornarem cristãos, pois o grego não tinha conseguido suprir os dialetos locais.
Em que isso
contribuiu para o cristianismo? O Evangelho universal precisava de uma língua
universal para poder exercer um impacto real sobre o mundo. Ao surgir o cristianismo, os povos que
habitavam as regiões do Mediterrâneo tinham sido profundamente influenciados
pela cultura helênica, a qual tinha seu lugar nas cidades do império onde se
concentravam o comércio e o trânsito, possibilitando a aquisição de riquezas e
o desenvolvimento de uma vida de bem-estar.
Os judeus
Por mais
importantes que as contribuições de Atenas e Roma, como pano de fundo histórico,
tenham sido para o cristianismo, as contribuições dos judeus formam a herança
do cristianismo. O cristianismo pode ter se desenvolvido no sistema político de
Roma e pode ter encontrado o ambiente intelectual criado pela mente grega, mas
seu relacionamento com o judaísmo foi muito mais íntimo. Nichols diz que os
judeus prepararam o “berço do cristianismo”, fizeram os preparativos para seu
nascimento e alimentaram-no na sua primeira infância. Abaixo estão elencadas as
contribuições dos judeus para o desenvolvimento do cristianismo:
• monoteísmo;
• esperança messiânica;
• sistema ético;
• filosofia da história;
Monoteísmo
O monoteísmo
judaico apresenta algumas distinções do monoteísmo cristão. O monoteísmo
judaico preparou os povos pagãos para o cristianismo. Isso foi um “atalho” para
a difusão da religião cristã. Lohse faz uma descrição do monoteísmo judaico:
O judaísmo não
conhece uma dogmática desenvolvida, nem uma confissão de fé, contendo uma
resumida doutrina de Deus. Falar de Deus significa, para o judaísmo, falar de
sua Lei, pela qual se pronunciavam a vontade e o mandamento de Deus. Qualquer
coisa que o judeu experimenta na vida diária compreende-a como dom de Deus.
Acontece algo bom, ele tem razão para alegrar-se. Ao comer e beber, o judeu
profere uma oração de agradecimento. Deus proclamou sua vontade pela palavra,
não existe outra fonte de revelação, senão a palavra. Deus está muito longe dos
seres humanos porque é o Santo que governa o mundo inteiro. Ele
entra em contato
com o mundo somente por meio de seres intermediários, não de forma imediata. A
idéia do futuro julgamento de Deus determina a fé e a ação do judeu piedoso,
que sabe, a partir da Lei de seu Deus, o que deve fazer aqui na terra e o que
lhe será perguntado no julgamento. É tarefa do ser humano obedecer a Deus e
agir conforme sua vontade.
O judaísmo
contrastava flagrantemente com a maioria das religiões pagãs, ao fundamentar-se
num sólido monoteísmo espiritual.
Esperança
messiânica
Os judeus
ofereceram ao mundo a esperança de um messias que estabeleceria a justiça na
terra. Tal esperança messiânica estava em claro antagonismo com as aspirações
nacionalistas pintadas por Horácio (65-8 a. C.) no poema em que descreve um rei
romano ideal que haveria de vir — o fi lho que nasceria a Augusto. A esperança
de um messias tinha sido popularizada no mundo romano a partir desta firme proclamação
pelos judeus.
Apesar da
diversidade das versões sobre o messias e o tempo da salvação, todas elas
tinham em comum a aparição do ungido de Deus como regente e juiz que poria
termo à humilhação de Israel, expulsaria os pagãos e fundaria o reino da
glória. Notamos como essa esperança messiânica, além de influenciar a mensagem
de Jesus, modifica também a relação de algumas correntes de pensamentos (ex: gnose)
com o cosmo. Essa propagação do “sonho” messiânico pelo Império Romano
contribuiu, em parte, para o cristianismo, em razão de preparar aqueles que
mais tarde iriam abraçar a nascitura religião no mundo gentílico. É importante,
também, perceber que a transplantação dos judeus para outras partes do mundo
levou à decadência do culto javista, denunciada e combatida nos escritos dos
profetas menores. Graças ao ministério desses profetas, foi retomado um
despertar espiritual baseado na esperança da vinda do Messias restaurador (um
rei político vencedor, que castigaria os pagãos e exaltaria os judeus) e na fidelidade
e obediência à vontade de Deus.
Sistema ético
Na parte moral
da lei judaica, o judaísmo também ofereceu ao mundo o mais puro sistema ético de
então. O elevado padrão proposto nos Dez Mandamentos chocava-se com os sistemas
éticos prevalecentes e com práticas por demais corruptas dos sistemas morais
pelos quais se pautavam.
A filosofia da História
A filosofia da
história substantiva está preocupada com os eventos e pessoas da história. Seu
objetivo principal é compreender como os eventos da história passada podem ser
arranjados de tal forma a indicar a maneira pela qual eventos futuros irão
ocorrer. Grande parte da metodologia dessa disciplina consiste em ordenar os eventos
do passado num padrão que demonstre a relação entre esses eventos. Uma vez que
tal padrão é estabelecido, os eventos futuros podem ser preditos aplicando esse
padrão no tempo futuro. Ademais, a filosofia da história substantiva procura
estabelecer a significância de um evento dentro do contexto de toda a história.
A filosofia da história analítica difere da filosofia da história substantiva
no ponto em que seu objeto é muito mais os documentos históricos do que os
eventos registrados nesses documentos. Essa disciplina não é preditiva, uma vez
que sua única preocupação são os registros de eventos passados. Seus objetivos
principais são compreender como os historiadores perceberam os eventos passados
e como eles registraram tais eventos.
Em suma, a
filosofia da história analítica busca determinar significado na historiografia enquanto
a filosofia da história substantiva busca determinar o significado de toda a
história. Os judeus tornaram possível uma filosofia da história por insistirem
que a história tem significado. Eles se opuseram a toda e qualquer visão que
deixasse a história sem significado, como uma série de círculos ou como
processo de evolução linear. Eles sustentavam uma visão linear e cataclísmica
da história, na qual o Deus soberano, que criou a história, iria triunfar sobre
a falha do ser humano na história para trazer uma era dourada.