quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Quando chegou a Plenitude dos tempos



“Quando chegou a plenitude dos tempos Deus enviou seu Filho nascido de mulher!” Gl 4, 4


Que é que Paulo quis dizer com “plenitude do tempo”? Que é que esse momento tem de tão especial para ser considerado pelo apóstolo como o tempo (kairós) de Deus? Quais condições determinaram o envio do Filho? A essas perguntas tentaremos responder. O significado da expressão “plenitude do tempo” não é ponto pacífico entre os exegetas do Novo Testamento.  O termo “plenitude do tempo” na passagem de Gl 4,4 explicando ainda que se trata do “tempo determinado” por Deus para seus filhos menores tornarem-se herdeiros adultos. A Bíblia do Peregrino, por sua vez,  “Mas quando se cumpriu o prazo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. Todavia, essa diferença de tradução auxilia-nos a encontrar a real intenção de Paulo ao escrever esse verso. “Plenitude do tempo” e “cumpriu o prazo” dão-nos a ideia de momento certo, ideal e esperado. O termo grego que traz em seu bojo esses significados é kairoi (kairós).

Kairós – Vocábulo grego que significa tempo. Como encontrado no Novo Testamento, exprime não apenas um dado cronológico, mas, acima de tudo, a ação de Deus no universo, que, de acordo com os seus atributos morais e a absolutos, trabalha os tempos e as estações para que todos os seus planos e conselhos tenham plena consecução (1Ts 5,1). Kairós é o tempo de Deus. Oscar Cullmann explica-o da seguinte forma: “O que caracteriza o emprego de kairós é que ele designa no tempo um momento determinado por seu conteúdo”.   No Novo Testamento o uso do termo kairoi é aplicado à história da salvação. O termo não se refere a estimativas humanas, é um decreto divino que faz desta ou daquela data um kairós, e isso em vista da realização do plano divino da salvação, o qual se dá porque tal plano, em sua realização, está ligado aos kairoi, aos momentos escolhidos por Deus, que é uma história da salvação.

Respondemos às duas primeiras perguntas levantadas no início. Resta apenas uma: “Quais condições determinaram o envio do Filho?” O cristianismo não é um evento isolado do mundo, ele surgiu num tempo determinado, num contexto geopolítico singular e em condições históricas propícias que serviram como pano de fundo para a afirmação da sua influência. É exatamente nesse pano de fundo (Cristo e o contexto histórico em que nasceu) que podemos encontrar as melhores evidências e os melhores vestígios da atuação divina que transformou e deu forma à natureza e mensagem da Igreja cristã.

A primeira observação que devemos fazer é: Jesus é um evento histórico, ou seja, ele viveu durante um certo intervalo de tempo e nesse mundo em que nascemos, vivemos e morremos até hoje. Não é exatamente isso que nos mostra o evangelista Lucas. Na verdade, ele buscou situar a pessoa histórica de Jesus dentro de limites temporais. Segundo ele, Jesus de Nazaré nasceu sob o governo do imperador Augusto (Lc 2,1). Como podemos observar em Mc 1,15 e Gl 4,4, existe uma delimitação temporal de um conjunto de condições históricas, políticas, econômicas, sociais e geográfi cas, às quais, para eles, propiciaram a encarnação do Verbo, constituindo assim, como vimos, o kairós de Deus. Esses textos revelam que Jesus Cristo não nasceu numa época qualquer, mas ao chegar a “plenitude dos tempos”. Como as profecias messiânicas não apontam para uma data da vinda do Messias, não se pode interpretar esses textos como fazendo alusão ao cumprimento de uma profecia específica. O que se pode supor é uma linha com uma profecia de Daniel.  De acordo com os estudiosos, a interpretação adequada de “plenitude dos tempos” é: “tempo certo”, “momento ideal”, “ocasião propícia” designada por Deus, mas não revelada nas profecias escritas.

Assim, temos a seguinte definição técnica para a expressão “plenitude dos tempos”: época ou contexto histórico cuja realidade (acontecimentos) foi muito favorável ao objetivo da vinda de Cristo ao mundo, que é a anunciação e propagação universal do Evangelho. A natureza dessa realidade é a uniformização política propiciada pelo sistema administrativo do Império Romano, somadas as contribuições religiosas, dos judeus, e culturais, dos gregos, que já faziam parte desse ambiente mundial. Essas três civilizações trouxeram grandes contribuições para a ocorrência do evento central e único da linha da salvação durante o Império Romano do séc I. Roma influenciou na política,os gregos na questão intelectual e os judeus na religiosidade.

Os romanos

Como já sabemos, os romanos influenciaram politicamente os povos sob seu domínio. A seguir, algumas contribuições prestadas por Roma à difusão do cristianismo:

• domínio mundial de Roma;
• os povos unificados por uma língua universal;


Domínio mundial de Roma

Quando o cristianismo surgiu, e durante os primeiros séculos de sua existência, os romanos eram os senhores do mundo. O objetivo dos romanos era ter a supremacia sobre toda a costa do Mediterrâneo, com a finalidade de, nos meses de inverno, terem uma rota segura até o Egito (celeiro do império). Em vista disso, conquistaram todos os povos entre Roma e o Egito, portanto, circundaram o Mediterrâneo. Eduard Lohse descreve assim a empreitada territorial romana:

Após sua vitória no encarniçado conflito com Cartago, os romanos deram, a partir da metade do século II a.C., crescente atenção à Grécia e ao Oriente. Em seu encontro com o helenismo, assimilaram a arte e a ciência dos gregos, estendendo, ao mesmo tempo, cada vez mais seu poder, por meio de sucessos políticos. No século I a. C., a Síria e a Palestina submeteram-se à tutela romana. Com isso, todo o leste da região mediterrânea estava sob o domínio dos romanos, que se tornaram os sucessores gregos em todos os lugares.

A importância de conhecer-se a extensão do domínio romano é que, como podemos notar, o cristianismo, durante os três primeiros séculos de existência, não ultrapassou os limites do Império Romano. Não só isso. Como o professor de História da Igreja Robert H. Nichols nos lembra, os romanos não dominaram apenas pela força todas essas regiões. Eles possuíam uma administração eficaz e inteligente, pois onde quer que estendessem o seu domínio, eles levavam uma civilização incomparavelmente superior à anteriormente existente naquelas terras.

Unificação dos povos

Por muitas eras, governos separados tinham formado grupamentos humanos que se sentiam diferentes e isolados de todos os grupos; mas, com o Império Romano, os povos unificaram-se, no sentido de que todos os governos tinham sido derrubados e um poder único dominava em toda parte. Os romanos, como nenhum outro povo até então, desenvolveram um sentido da unidade da espécie sob uma lei universal. Essa unificação foi possível graças à administração centralizada que Roma outorgava aos povos sob o seu domínio. Existiam províncias diretamente subordinadas ao imperador e outras subordinadas ao senado. As províncias subordinadas ao imperador eram administradas por governadores indicados pelo próprio César. As subordinadas ao senado também eram administradas por governadores, entretanto esses eram escolhidos pelo senado, que enviava regularmente procônsules a fim de fiscalizarem os referidos territórios. Uma situação estranha e que está relacionada diretamente a Palestina eram os chamados “principados aliados”, os quais eram administrados por príncipes que deveriam possuir a aprovação de Roma. Gozavam de um grau maior de autonomia, contudo, ao menor sinal de descontrole, eram visitados por procuradores de Roma com o objetivo de supervisionar o território.

Língua universal

O Império Romano era um Estado cosmopolita, em cujo extenso território, com suas fronteiras defendidas pelas armas, a cultura greco-romana podia desenvolver-se sem obstáculos, e aos poucos formou uma nova unidade. Em todo o Oriente do império, e também em grandes partes do Ocidente, falava-se e entendia-se o grego, que se tornara a língua geral da região mediterrânea desde os tempos de Alexandre Magno. A partir de um desenvolvimento e de uma simplificação da língua ática, falada em Atenas no tempo dos poetas trágicos e de Platão, nascera a assim chamada koinê, ou dialeto “comum”. Era usada para todos os fins no intercâmbio popular. Quem quer que a falasse seria entendido em toda parte, especialmente nos grandes centros, onde o cristianismo foi primeiramente implantado. Os primeiros missionários pregaram quase sempre nessa língua, e nela foram escritos os livros neotestamentários.

Mas não era em todos os lugares que se falava e se escrevia essa língua gramaticalmente correta. Também se misturavam nela palavras de línguas orientais e latinas. Todo mundo, porém, na medida do possível, se esforçava por dominar o grego, a fim de não ser contado entre os bárbaros, que eram vistos com desprezo, porque sua língua parecia uma série de sons incompreensíveis (bar-bar); e todos queriam possuir uma pequena porção da cultura dos gregos.

Entretanto, devemos considerar que o koinê era, também, um dialeto urbano. Nas aldeias da Galiléia, o aramaico presumivelmente ainda era a língua dominante. Quando o cristianismo, em suas formas urbanas, eventualmente penetrava nas culturas das aldeias, os documentos gregos precisavam ser traduzidos para as línguas autóctones, inclusive, ironicamente, o aramaico, agora um dialeto falado na região da Síria. Renan também observou essa característica do mundo romano e até o relacionou ao fato de os camponeses serem os últimos a se tornarem cristãos, pois o grego não tinha conseguido suprir os dialetos locais.

Em que isso contribuiu para o cristianismo? O Evangelho universal precisava de uma língua universal para poder exercer um impacto real sobre o mundo.  Ao surgir o cristianismo, os povos que habitavam as regiões do Mediterrâneo tinham sido profundamente influenciados pela cultura helênica, a qual tinha seu lugar nas cidades do império onde se concentravam o comércio e o trânsito, possibilitando a aquisição de riquezas e o desenvolvimento de uma vida de bem-estar.



Os judeus

Por mais importantes que as contribuições de Atenas e Roma, como pano de fundo histórico, tenham sido para o cristianismo, as contribuições dos judeus formam a herança do cristianismo. O cristianismo pode ter se desenvolvido no sistema político de Roma e pode ter encontrado o ambiente intelectual criado pela mente grega, mas seu relacionamento com o judaísmo foi muito mais íntimo. Nichols diz que os judeus prepararam o “berço do cristianismo”, fizeram os preparativos para seu nascimento e alimentaram-no na sua primeira infância. Abaixo estão elencadas as contribuições dos judeus para o desenvolvimento do cristianismo:

• monoteísmo;
• esperança messiânica;
• sistema ético;
• filosofia da história;

Monoteísmo

O monoteísmo judaico apresenta algumas distinções do monoteísmo cristão. O monoteísmo judaico preparou os povos pagãos para o cristianismo. Isso foi um “atalho” para a difusão da religião cristã. Lohse faz uma descrição do monoteísmo judaico:

O judaísmo não conhece uma dogmática desenvolvida, nem uma confissão de fé, contendo uma resumida doutrina de Deus. Falar de Deus significa, para o judaísmo, falar de sua Lei, pela qual se pronunciavam a vontade e o mandamento de Deus. Qualquer coisa que o judeu experimenta na vida diária compreende-a como dom de Deus. Acontece algo bom, ele tem razão para alegrar-se. Ao comer e beber, o judeu profere uma oração de agradecimento. Deus proclamou sua vontade pela palavra, não existe outra fonte de revelação, senão a palavra. Deus está muito longe dos seres humanos porque é o Santo que governa o mundo inteiro. Ele
entra em contato com o mundo somente por meio de seres intermediários, não de forma imediata. A idéia do futuro julgamento de Deus determina a fé e a ação do judeu piedoso, que sabe, a partir da Lei de seu Deus, o que deve fazer aqui na terra e o que lhe será perguntado no julgamento. É tarefa do ser humano obedecer a Deus e agir conforme sua vontade.

O judaísmo contrastava flagrantemente com a maioria das religiões pagãs, ao fundamentar-se num sólido monoteísmo espiritual.

Esperança messiânica

Os judeus ofereceram ao mundo a esperança de um messias que estabeleceria a justiça na terra. Tal esperança messiânica estava em claro antagonismo com as aspirações nacionalistas pintadas por Horácio (65-8 a. C.) no poema em que descreve um rei romano ideal que haveria de vir — o fi lho que nasceria a Augusto. A esperança de um messias tinha sido popularizada no mundo romano a partir desta firme proclamação pelos judeus.

Apesar da diversidade das versões sobre o messias e o tempo da salvação, todas elas tinham em comum a aparição do ungido de Deus como regente e juiz que poria termo à humilhação de Israel, expulsaria os pagãos e fundaria o reino da glória. Notamos como essa esperança messiânica, além de influenciar a mensagem de Jesus, modifica também a relação de algumas correntes de pensamentos (ex: gnose) com o cosmo. Essa propagação do “sonho” messiânico pelo Império Romano contribuiu, em parte, para o cristianismo, em razão de preparar aqueles que mais tarde iriam abraçar a nascitura religião no mundo gentílico. É importante, também, perceber que a transplantação dos judeus para outras partes do mundo levou à decadência do culto javista, denunciada e combatida nos escritos dos profetas menores. Graças ao ministério desses profetas, foi retomado um despertar espiritual baseado na esperança da vinda do Messias restaurador (um rei político vencedor, que castigaria os pagãos e exaltaria os judeus) e na fidelidade e obediência à vontade de Deus.

Sistema ético

Na parte moral da lei judaica, o judaísmo também ofereceu ao mundo o mais puro sistema ético de então. O elevado padrão proposto nos Dez Mandamentos chocava-se com os sistemas éticos prevalecentes e com práticas por demais corruptas dos sistemas morais pelos quais se pautavam.



A filosofia da História

A filosofia da história substantiva está preocupada com os eventos e pessoas da história. Seu objetivo principal é compreender como os eventos da história passada podem ser arranjados de tal forma a indicar a maneira pela qual eventos futuros irão ocorrer. Grande parte da metodologia dessa disciplina consiste em ordenar os eventos do passado num padrão que demonstre a relação entre esses eventos. Uma vez que tal padrão é estabelecido, os eventos futuros podem ser preditos aplicando esse padrão no tempo futuro. Ademais, a filosofia da história substantiva procura estabelecer a significância de um evento dentro do contexto de toda a história. A filosofia da história analítica difere da filosofia da história substantiva no ponto em que seu objeto é muito mais os documentos históricos do que os eventos registrados nesses documentos. Essa disciplina não é preditiva, uma vez que sua única preocupação são os registros de eventos passados. Seus objetivos principais são compreender como os historiadores perceberam os eventos passados e como eles registraram tais eventos.

Em suma, a filosofia da história analítica busca determinar significado na historiografia enquanto a filosofia da história substantiva busca determinar o significado de toda a história. Os judeus tornaram possível uma filosofia da história por insistirem que a história tem significado. Eles se opuseram a toda e qualquer visão que deixasse a história sem significado, como uma série de círculos ou como processo de evolução linear. Eles sustentavam uma visão linear e cataclísmica da história, na qual o Deus soberano, que criou a história, iria triunfar sobre a falha do ser humano na história para trazer uma era dourada.

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