quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Cristologia: Parte II



Morte e ressurreição, eis aí o centro da fé cristã. Nós cristãos afirmamos que Jesus de Nazaré morreu. Mas também afirmamos que ele ressuscitou. A passagem de Jesus de Nazaré da morte para a vida é o mistério central de nossa fé. E o mistério pascal, ponto de partida da fé explícita em Jesus Cristo e da reflexão cristológica, a começar com as cristologias do Novo Testamento. Embora se fale de cristologia no singular há, com efeito, diversas cristologias, porque cada uma delas faz uma abordagem do mesmo Jesus de Nazaré a partir de óticas e preocupações diferentes. Essa diversidade de cristologias, que já se faz presente no Novo Testamento, se revela uma riqueza para a fé cristã.

Se Cristo não tivesse ressuscitado seria vã a nossa fé ( l Cor 15,17), ou melhor, nem  sequer haveria fé cristã, não haveria reflexão cristológica. Cristo ressuscitou! Este é o anúncio básico de todo o cristianismo (At 2,32; 3,15). Como podemos constatar pela leitura dos textos do Novo Testamento, principalmente no final dos quatro evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, esta notícia causou espanto e alegria nos primeiros seguidores de Jesus, bem como preocupação e reação nos poderosos da religião e da política da época. Com esta notícia, estranha e escandalosa, os discípulos e discípulas do Senhor correram o mundo, angariando adeptos, formando comunidades, suscitando esperanças e expectativas no meio de pessoas e povos oprimidos, instaurando novos projetos de vida, transformando sociedades.
            Cristo ressuscitou! Se tudo tivesse terminado na cruz, o crucificado teria sido mais um entre tantos crucificados do seu tempo, não teria havido nenhuma mudança na
história, seríamos ainda pessoas sem fé e, portanto, sem esperança. Cruz sem ressurreição é sinal de morte, de fim, de desespero, de caminho fechado, O cristianismo não é uma religião da morte, da dor, do absurdo desta vida, da renúncia aos valores deste mundo. O cristianismo anuncia, isso sim, a transformação desta vida e deste mundo.
Professamos em nosso Credo cristão: Jesus de Nazaré padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Mas ressuscitou! A vida venceu a morte; a morte foi tragada pelo poder da vida (1 Cor 15,54). O crucificado está vivo! Mas, quem ressuscitou não foi um qualquer. Foi uma vítima do poder religioso e do poder político. Foi um mártir das causas sociais, alguém que havia se colocado do lado dos pobres, das mulheres, dos doentes, das multidões. Alguém que se havia colocado contra os donos da religião e do poder, contra as autoridades opressoras e dominadoras do povo. Ele era um homem credenciado por Deus, havia feito sinais e prodígios em nome de Deus (At 2,22). Ele havia anunciado um Reino diferente, o Reino de um Deus diferente. Falava de Deus como de um Pai amoroso, próximo dos pecadores arrependidos, um Pai que queria vida em abundância para todos.
            Quem ressuscitou não foi uma idéia, um mito, um ideal, uma causa. Foi uma pessoa que ressuscitou. Uma pessoa que havia sido morta, rejeitada, excluída. Aquele que foi morto pela mão dos homens, Deus o ressuscitou! (At 2,23-24). Ressurreição sem morte é teatro, representação apoteótica. O cristianismo não é uma religião que põe panos quentes sobre os conflitos do mundo, não é uma religião do espetáculo, um show. A fé cristã se fundamenta em uma morte, no fim trágico de alguém que lutou pela vida. O ressuscitado é o crucificado!
 O mistério da Páscoa — passagem da morte para a vida — é centro de nossa fé. O que aconteceu com Jesus deve acontecer também conosco. A vida cristã é passagem: do egoísmo para a solidariedade, da indiferença para a participação, do ódio para o perdão, da divisão para a comunhão.
            A Páscoa de Jesus foi, por isso, ponto de partida para a Páscoa de seus discípulos e discípulas. Antes da Páscoa, eles tinham em Jesus uma fé embrionária, bem pouco amadurecida. Eles o seguiam, apreciavam suas palavras, punham-se do lado dele nas discussões contra os fariseus e sacerdotes, reconheciam-no como alguém diferente. Percebiam nele alguém que valia a pena seguir, alguém que tinha palavras de vida eterna (Jo 6,68), que saciava a sede de vida eterna (Jo 4,14), que matava não somente a fome de pão material (Jo 6,1-13), mas também do pão espiritual (Jo 6,51). As multidões viam nele um representante de Deus, um profeta, um Messias (Lc 7,16; Jo 6,14); queriam fazê-lo rei (Jo 6,15); corriam ele pedindo socorro nas necessidades (Mc 5,6. 22-23.27-28;  7,25-26); traziam-lhe os doentes e endemoninhados para serem curados (Mc 1,31), e as crianças para serem abençoadas (Mt 19,13).
            Acreditavam em Jesus. Mas não havia ainda uma fé explícita, clara, firme. Tanto é que quando Jesus foi preso, quase todos o abandonaram, Pedro o negou, os discípulos de Emaús voltaram para seus afazeres normais. Uma fé explícita só se desenvolveu após a experiência pascal, com a vinda do Espírito Santo, com a percepção de que Jesus continuava vivo no meio deles. A partir de então, eles vão compreendendo o sentido das atitudes, das opções, do comportamento, da mensagem e da morte de Jesus de Nazaré. Começam, então, a anunciar e, depois, a pôr por escrito sua mensagem de salvação. Fazem também a sua Páscoa: de uma é implícita para uma fé explícita, do escondimento e do medo para a coragem pública e o anúncio do Cristo crucificado-ressuscitado.
            Na experiência da Páscoa, encontra-se o fundamento do que será uma fé explícita e amadurecida em Jesus Cristo. Na Páscoa, inicia todo o trabalho de interpretação da vida, da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus. Na Páscoa, tem início a cristologia.  A existência terrena de Jesus de Nazaré, vivida na obscuridade e na fraqueza, passa a ter um sentido profundamente libertador, quando os cristãos a iluminam com a luz da experiência pascal. Em Jesus Cristo, morto e ressuscitado, os primeiros cristãos percebem e confessam dois modos de existir, que caracterizam duas etapas distintas da vida do Mestre: a etapa de fraqueza, o modo humano e carnal de existir, a vida terrena, o Jesus de Nazaré pré - pascal; e a etapa da plenitude, o modo celestial e espiritual de existência, o Cristo da fé, o Jesus pós - pascal (Rm 1,3-4; lTm 3,16; l Pd 3,18; At 5,31).
            Estas duas etapas ou modos distintos de existência de Jesus explicam as duas orientações básicas da cristologia das comunidades cristãs do século I. Alguns como João e Paulo, insistem no Verbo pré-existente, no mediador de toda a criação (Jo 1,1-14; Fl 2,6-11; Cl 1,15-20) ou no Cristo ressuscitado e glorificado (Rm 6,4-11; 1 Cor 15,20). Trata-se de uma cristologia descendente, que desce do mistério para a história, da divindade para a humanidade.  Outros, como os evangelistas sinóticos, olham preferencialmente para o Jesus terrestre e, a partir daí, desenvolvem sua reflexão sobre o Cristo, Filho de Deus. Uma cristologia ascendente, que sobe da história para o mistério, da humanidade para a divindade.
            Todavia, todos partem da fé na ressurreição daquele Jesus que foi morto na cruz. O mistério pascal, a passagem da morte para a ressurreição, une inseparavelmente as duas orientações cristológicas. Na fé do Novo Testamento não existe ruptura entre o Jesus terrestre e o Cristo glorificado. Nas duas orientações básicas do Novo Testamento, está sempre presente o mesmo sujeito, embora apresentado em duas distintas etapas de sua existência.

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